Parte 2
Na volta de Chay, ele entrou pela porta da cozinha. “Você sabe onde a senhorita
Mel pode estar?”, ele perguntou a Sra. Barrow.
Ela anuiu com a cabeça. “Pobre pequena alma, está um trapo. Está no jardim
de inverno, mas por que alguém se sentaria naquele lugar velho e sombrio assim,
não sei”.
“Certo”, Chay disse e dirigiu-se ao jardim de inverno.
“Mas ela disse que queria ficar só”, Sra. Barrow gritou atrás dele. Mas ele
não percebeu.
O jardim de inverno tinha sido construído nos fundos da casa. As paredes
eram feitas principalmente de janelas. Deveria ter sido projetado pelo mesmo
homem que colocou a janela de arcos octogonais nas baias, Chay pensou, porque
possuía o mesmo estilo, e parecia ter a mesma idade, mas tinha sido abandonado
há muito tempo. As janelas estavam incrustadas com sal do mar e as poucas
plantas do lado dentro estavam mortas há tempos.
Ele podia entender por que a senhorita Mel tinha escolhido vir se sentar
aqui. Era um bom lugar para se sentir miserável. Ele viu-a sentada e parada em
um banco entre uma palma em um vaso, morta, e uma samambaia marrom grande.
“Senhorita Mel”, ele disse e espirrou.
Ela saltou e girou. “Oh, Sr. Suede, você me assustou”.
“Você se importa se eu me juntar a você?”.
“Não, claro que não”, ela disse miseravelmente. “Entretanto, creio que não
sou uma companhia muito boa”.
“É compreensível”, ele disse enquanto abria caminho entre em os vasos de plantas
mortas. Quando ele alcançou a cadeira onde ela estava sentada, parou em sua
frente.
Os olhos dela estavam muito vermelhos e com as bordas inchadas. Ela olhou
de relance para ele, então baixou o olhar. Ela sabia como sua aparência deveria
estar, ele pensou, uma imagem muito triste.
Enquanto ela baixava os olhos, a boca abriu em surpresa. “Sr. Suede, suas
mãos! Estão todas arranhadas e sangrando”.
Chay fez uma careta. “Eu sei”. Ele espirrou novamente.
“Mas como—”, os olhos dela semicerraram, e foram até o sobretudo dele, que estava
estranhamente inchado, e então o bolso se moveu.
“Tenho algo para você”, Chay disse e cautelosamente desabotoou o sobretudo.
O colete levantou e um uivo veio de dentro. Ele cuidadosamente desabotoou o
colete, colocou a mão dentro dele, xingou, e retirou a mão com arranhões novos,
colocou a mão novamente e tirou um gato que estava rosnando.
“Gatinho Kitty!”, ela gritou eufórica e ergueu o animal das mãos dele.
“Seja cuidadosa ele é um gato maligno e selva…”, a voz dele diminuiu. A
besta maligna que tinha arranhado suas mãos estava aconchegada contra os seios da
senhorita Mel, ronronando como um moedor de café e roçando o queixo dela com sua
cabeça grande e feia. Seu único olho amarelo piscava com presunção maligna para
Chay enquanto sua dona sussurrava para ele como se ele fosse um bebê.
“Oh, Sr. Suede, muito obrigada! Eu pensei que eu o tinha perdido para
sempre”. Lágrimas brilhavam nas pontas de suas pestanas, mas havia muita
felicidade nas lágrimas. As bochechas estavam coradas, não mais o tom pálido
fantasmagórico de antes. Ela beijou a cabeça do gato repetidamente, aninhando seus
pelos, acariciando a besta feia como se ela a achasse a criatura mais bonita no
mundo.
As mulheres eram estranhas, ele pensou, não pela primeira vez. “Eu sabia que
você estava preocupada com ele, então…”
“Eu estava, e não posso te dizer o quanto estou agradecida. Mas como você o
achou? Ele normalmente não vai para os homens”.
Ele não tinha ido a Chay, também. Chay o tinha persuadido com uma trilha de
pedaços de presunto que tinha comprado em uma fazenda, então o tinha prendido num
canto e tinha jogado o casaco sobre ele. O gato lutou muito, mas Chay
prevaleceu, à custa das mãos, uma camisa meio cortada em tiras, um colete arruinado,
e um casaco manchado.
“Oh, tenho jeito com animais”, Chay disse modestamente. Não era uma
mentira, ele pensou. Ele tinha jeito com a maioria de animais—apenas não tinha
com crias do inferno.
Eles se sentaram lá durante algum tempo, em silêncio, ela sussurrando para o
gato e ele assistindo, perplexo. Ela era uma dama tão bonita, jeitosa, limpa e
meticulosa. E ele podia entender que ela possuísse um gato, sim—uma criatura
pequena, fofa, com modos delicados e hábitos limpos. Mas este enorme, feio, velho,
cheio de feridas e cicatrizes, é que era um mistério.
Depois de um tempo ele percebeu que ela tinha ficado quieta. Muito quieta.
Ele não podia ver seu rosto; estava escondido pelo gato. Ele abaixou a cabeça
adiante e deu uma olhada. As lágrimas corriam por suas bochechas.
Ele queria dizer algo reconfortante, mas não conseguia pensar em nada. Uma fungada escapou.
Chay retirou um lenço e o deu para ela. Ela colocou o gato no chão e tomou o
lenço com um abafado ‘obrigada’. Ela esfregou as bochechas com ele e então assoprou
nele com uma explosão feminina feroz. O gato se sentou sobre suas coxas com as patas
e garras.
“Eu sinto muito”, ela murmurou. “Você salvou o gatinho Kitty e ele é a
coisa mais importante no mundo para mim. Sei que tenho sorte e é por isso que estou
tentando ser estóica. Então vim para cá. Não quero que Lua me veja assim. Ela
se culpa, eu sei”.
“Ela não ateou fogo no chalé”.
“Eu sei. Mas ela sabe quem foi e… Ela carrega o peso do mundo nas costas,
aquela menina. Ela sempre leva tudo o mais seriamente possível. É sua força,
mas também sua fraqueza”.
“Para mim também parece que você está carregando a situação nas costas,
sabe. Não é com ela que você deveria estar se preocupando. Você é a pessoa que perdeu
tudo”.
“Eu não perdi tudo. Eu apenas voltei ao começo, quando meu pai morreu.
Exceto que eu tinha—meus livros”. As palavras saíram lutando contra lágrimas
sufocadas.
A determinação dela de não fazer um estardalhaço inesperadamente o tocou. Atingindo
o interior dele, Chay bateu levemente no ombro dela. Ele era mais familiar com mulheres
que deixavam suas emoções claras. Dolores, sua última amante, lançava coisas e
lamentava ruidosa e dramaticamente. Chay entendia assim.
Depois de alguns minutos ela recuperou o controle e assoprou outra explosão
feroz no lenço. “Eu sinto muito. São os livros que eu me importo mais de ter perdido”.
“Livros?”, Chay perguntou cautelosamente. Ela tinha perdido a casa, com
todas as suas coisas pequenas, bonitas, tão limpas e brilhantes que obviamente
amava, e estava lamentando por causa de livros?
“Oh sim, meus livros são—eram muito preciosos para mim. Alguns deles
pertenceram ao meu querido pai. Ele era um famoso estudioso, sabe, e seus
livros eram raros e insubstituíveis. E outros… alguns dos meus livros eram como
amigos, davam tanto conforto”.
“Ah”, Chay fez um som simpatizante.
Ele não tinha nenhuma ideia do que ela estava dizendo. Livros como amigos?
Dando conforto?
O único livro que já tinha dado conforto a Chay tinha sido um que ele e
alguns outros tinham queimado em uma noite gelada nas montanhas da Espanha. Um
dos outros tinham sido achados em uma casa saqueada. Era um livro grande.
Manteve-os mornos por uma hora ou duas.
Ele não entendia, não sabia o que dizer para confortá-la. Afora cavalos,
ele possuía muito pouco, apenas suas roupas e algumas coisas. Nada que não pudesse
ser jogado em uma valise.
Ele olhou para as janelas cobertas de sal. Estava quase escuro do lado de
fora. “Os chalés podem sempre ser reconstruídos”, ele disse.
“Eu não disponho de dinheiro. Eu tinha uma soma pequena em dinheiro, mas apenas
o suficiente para fazer uma vida frugal, complementado pelas minhas galinhas e
meu jardim. O chalé era meu único bem. Era o que me permitia ser independente, ele
e a pequena renda que ganho por dar lições de música”.
“Então o que você fará?”.
Ela suspirou. “Suponho que terei que voltar a ser governanta”.
“Você não gosta, madame?”.
Ela não respondeu. Ela pegou o gato novamente e enterrou o rosto em seu pelo.
Chay soube o que os silêncios dela significaram agora. Ele bateu de leve no
ombro dela novamente. Ela se sentia tão frágil quanto um pequeno pássaro sob a mão
desajeitada e grande dele.
O gato deu a ele um olhar ameaçador. Chay espirrou.
Depois da ceia, Lua deu o beijou de boa noite a Nicky e foi ao andar de
baixo. Que dia. De acordo com Nicky, o melhor de sua vida.
Ela não tinha nenhuma dúvida de que para Mel tinha sido o pior.
Ela se juntou aos outros na sala de visitas. Mel estava sentada perto do fogo,
o gato no colo, conversando com Arthur. O Sr. Suede estava acomodado em uma
mesa próxima jogando um jogo de cartas para apenas uma pessoa.
“Tenho que explicar ao Sr. Aguiar e ao Sr. Suede que decidi retornar a
minha antiga profissão de governanta”, Mel disse. “Se você não se importa, Lua,
pedi ao Sr. Aguiar para ir a Londres com vocês. Preciso comprar algumas roupas novas
e Londres é o melhor lugar para se conseguir um trabalho”.
“Não há necessidade de procurar por um trabalho”, Lua disse imediatamente.
“Eu te empregarei como governanta do Nicky”.
Mel agitou a cabeça. “Não, minha querida. É muito amável de sua parte, mas
eu não estou nem perto de ter educação o suficiente para atender às necessidades
do Nicky. Eu sou boa na educação doméstica feminina, sei um pouco de matemática
mas grego, latim e o resto, não”.
“Então devo te empregar como minha companheira de viagem”.
Mel deu a ela um olhar direto e disse com a voz firme, “Princesa Maria,
você não é responsável pela destruição do meu chalé, e eu não serei sua
pensionista”.
Lua deu a ela um olhar infeliz. Ela era responsável pela queima do chalé.
Se ela não tivesse fugido até Mel, nada disso teria acontecido. Mas Mel tinha seu
orgulho.
Arthur se debruçou adiante. “Você consentiria em trabalhar para mim, senhorita
Melanie?”.
Mel fez uma carranca. “Em qual cargo?”.
“Como governanta. Eu preciso de alguém para ensinar ao jovem Jim como ler e
escrever”.
“O quê?”, Chay Suede exclamou. Arthur deu a ele um olhar frio, e então retornou
ao seu jogo de cartas.
“Parece improvável o pai de Jim retornar, e como a Sra. Barrow está
absolutamente disposta a colocar o menino travesso na minha casa, não tenho
nenhuma escolha a não ser educá-lo”.
Lua ficou feliz com a solução, mas também perplexa, e mais que um pouco
cautelosa. Pegar um menino pescador órfão e pagar a alguém para educá-lo era
altamente irregular.
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